Em 22 de dezembro de 2016 eu ouvi uma frase que – de tempos em tempos – ainda ecoa no meu coração:

“você vai atravessar um deserto”

Eu sofri um grande trauma emocional no ano de 2016 que me fez colher resultados devastadores.

Eu era casada com o Henrique, tinha a Gabi com 9 anos e a Gi com 5 anos. Após um desconforto gástrico ele foi diagnosticado com um câncer maligno em estágio avançado, já com 3 metástases.


Eu vi o chão se abrir debaixo dos meus pés. Eu me lembro que estava sozinha no consultório médico do Hospital enquanto o Henrique estava no soro em uma outra sala.

Senti a minha vista escurecer, parecia que meu coração estava parando. Eu escutava as batidas do coração na minha cabeça tão vagarosamente que eu cheguei a perder os sentidos. Me lembro do cheiro da sala, da expressão do médico, da maçaneta gelada da porta. Eu me lembro de ter aberto a porta e a partir daí eu só tenho flashes de memória.

Lembro de estar na calçada do hospital ligando desesperada para a minha mãe gritando: ‘e agora?’ Minha mãe estava há mais de 100km de distância, estava com as crianças. Covardemente fiz com que ela se desesperasse e se sentisse ainda mais impotente do que eu.

Enquanto eu recuperava os sentidos, cada passo na direção do hospital ia me distanciando de mim. Me sentia morta por dentro, como se tivesse sido apagada a luz e minha alegria tivesse sido exterminada. Parecia que todas as vozes eram eco, que minha família e os meus sonhos tinham sido violentamente roubados de mim.

Se me pedissem para dizer o pior sentimento de todos os que eu já senti na vida, sem dúvida seria a impotência.

Dentro do hospital foram meus olhos que deram a notícia para o Henrique. Eu me lembro dele abaixar os olhos e dizer: ‘é grave né?’ Eu só acenei que sim com a cabeça. Não me lembro quanto tempo ficamos ali em silêncio. Ele na poltrona – no soro – e eu no chão, com a cabeça apoiada nos joelhos. Eu não sei no que ele pensava. Eu não conseguia pensar em nada. Só sentia frio.

Foram quase 6 meses de um tratamento forte, invasivo, e ele não resistiu.

Passamos juntos por todas as fases de um câncer metastático agressivo e avançado. Eu me agarrava na esperança de que tudo aquilo ia acabar, que tudo voltaria ao ‘normal’.

Me determinei a fazer tudo o que fosse necessário para que ele pudesse ter conforto, para que ele se recuperasse, custasse o que fosse para mim.

Não vou contar toda história aqui, mas em algum outro momento falo sobre isso para que o meu relato possa contribuir com a vida de muitas pessoas que passam o mesmo que eu passei. O que venho dizer hoje é sobre como lidei com o trauma emocional: eu não lidei.

Eu me coloquei no papel de mulher forte, de que eu precisava aguentar, de que precisava dar conta de tudo… e toda essa dor eu coloquei debaixo do tapete e praticamente passei a ignorar que ela existia.

Eu me lembro que no primeiro mês após a morte dele eu chorei todos os dias e todas as noites. Vivia como um zumbi dentro de casa, mal abria a boca e quando abria, as palavras não saíam. Mal conseguia dormir, mal conseguia comer. Eu tenho – como disse antes – apenas flashes de memória.

Não sei o tempo exato, mas calculo que tenha sido após 45 dias da morte do Henrique que eu notei a mala do hospital no chão da sala, aberta, com uma parte das coisas dentro e uma parte no chão (sim, minha família me respeitou e não mexeu em nada. E essa cena me causou uma confusão mental tão intensa que eu senti enjoo e tontura, não sabia mais onde estava.

Também me lembro de alguns fatos, quando eu comecei a deixar meus familiares e amigos ainda mais preocupados. Comecei a tirar as coisas dele dos armários, dobrar as roupas e entregar para serem doadas. Lembro de pedir para uma amiga abrir o computador da empresa e ver o que tinha lá que era pessoa e excluir para que pudesse devolver.

Lembro de pedir para outra amiga apagar as redes sociais, deletar whatsapp, tirar o chip do celular e jogar o chip fora. Comecei a tomar decisões muito dolorosas como se fossem as coisas mais simples do mundo. E hoje eu reconheço que eu não tinha lucidez nenhuma.

Por um lado as pessoas me ajudavam em tudo o que eu queria. Talvez para não me contrariar, porque talvez eu não fosse entender uma opinião diferente da minha, talvez porque pensavam: coitada, deixa ela…

Mesmo com poucas memórias a respeito dos últimos dias do Henrique e do primeiro mês após a partida dele, a única coisa que eu me lembro é que eu queria sair da dor. Essa alteração brusca de comportamento – de passar de um zumbi para uma máquina de resolver as cosias – me fez pensar que tinha tomado as rédeas da minha vida e passei a fingir que estava tudo bem.

Mudei de casa, passeei com as crianças, viajei com elas… eu não podia parar. Saía de casa à noite com amigas que fui conhecendo, comecei a beber, frequentar bares e festas. Nesses momentos crianças ficavam com os avós, com uma babá, eu sempre dava um jeito.

As pessoas que se importavam comigo me diziam que eu tinha que me respeitar, que eu tinha que entender meu momento, o luto, as fases do luto. Imediatamente eu já cortava dizendo que eu é que sabia da minha vida, que ninguém tinha noção do que eu sentia. Muitas vezes eu tinha ataques de raivam, outras me passava por desentendida e gargalhava.

Em poucos meses conheci o Don, meu marido. Foi outro tumulto na família e no meu círculo de amigos.

Desde o primeiro encontro, nunca mais nos separamos. E eu trouxe para no nosso relacionamento essa proteção, esse escudo de mulher forte, decidida, que não tem medo de nada, que é ousada… porém, isso só me fazia criar mais problemas para nós.

A minha falta de força e coragem para buscar ajuda, para olhar para a dor, me levava cada dia mais para o fundo. Um dia o Don me olhou nos olhos e disse: precisamos entender o que estamos fazendo da nossa vida.

Nessa ocasião tínhamos perdido muito dinheiro num negócio que fracassou. Quando eu entendi o rombo financeiro eu nem liguei. E isso o preocupou muito. Ele entendeu que nada era o bastante para que eu parasse para respirar.

Foi nesse período, quase 1 ano depois da morte do Henrique, que eu comecei a olhar para mim com um pouco mais de amor. E não era olhar, era aquela olhadinha pela fresta, sabe? E mesmo sem estar muito certa do caminho, aceitei o convite dele para participar de um curso intensivo de inteligência emocional. Durante esse treinamento eu tive consciência de que a minha dor era muito mais profunda e grave do que eu sequer imaginava.

A dor fazia tão parte de mim que eu estava acorrentada nessa ferida e ia sangrando para cima das pessoas que eu mais amava.

Eu não conseguia nem chorar.

Eu não conseguia sentir. Quando eu pensava no luto, simplesmente me transformava num ser inerte, perdia a noção de onde eu estava, não ouvia o que as pessoas diziam. Virava uma chave na minha mente e eu nem sabia se eu estava mesmo viva.

E eu não estava viva: estava apenas existindo.

Hoje eu sei o que foi que aconteceu comigo. Eu estava congelada no diagnóstico, no dia que toda minha vida tinha sido arrancada de mim. Eu chamava aquele dia de ‘o dia que eu morri’. E era assim que eu me sentia. Eu tinha deixado o trabalho, as crianças sempre tinham que ficar aos cuidados de alguém, deixei de acompanhar na escola, nas festinhas, nas lições de casa.

Meus dias passaram a ser dentro da clínica oncológica, entre quimioterapia, radioterapia e a realidade pós tratamento.

Passei dezenas de noites em claro conversando com o Henrique, contando histórias, lendo alto, até cantando… As dores que ele sentia eram tão fortes que os remédios não amenizavam e ele não conseguia descansar um minuto sequer, imagine dormir.

E com o passar dos dias ele foi se transformando naquela figura do câncer… em 24 de julho de 2017 ele foi hospitalizado, desenganado e eu fiquei ali ao lado dele esperando seu último suspiro.

Tem muitas coisas que eu posso te contar sobre viver com um doente terminal que você ama e escolheu para formar uma família. Eu posso também te contar sobre os milagres que eu vi acontecer em meio a tanto caos e tanta dor. Eu posso te contar sobre a fé, sobre a presença de Jesus nas minhas noites em claro. Sobre as madrugadas que eu vagava incansavelmente pelos corredores escuros do hospital e pelas coisas que vi por lá. Posso te contar sobre quando eu dei a notícia da morte dele para as nossas meninas…

Hoje vou falar sobre o que não cuidar da minha dor causou: ainda mais dor, ainda mais sofrimento, me tornei uma pessoa sem sonhos, sem esperança. Me tornei uma pessoa sem brilho, uma mãe distante porque eu não conseguia olhar para aqueles olhinhos desesperados. Eu não sabia nem lidar comigo…

Eu me sentia um lixo quando elas choravam. E eu tomei a decisão mais errada de todas: passar por cima de tudo, gastar cada centavo do que eu tinha buscando preencher um vazio que eu nunca consegui preencher. E vim ao longo dos anos colhendo o que eu jamais teria colhido se eu apenas tivesse me rendido e pedido ajuda.

Eu destruí com as minhas mãos e com a minha covardia tudo o que tinha restado.

Olhando para isso não sei – sinceramente – como o Don aguentou. Quer dizer, eu sei… ele gritava comigo, dizia que ia embora e depois voltava dizendo que só tinha voltado porque ‘uma voz’ dentro dele dizia para ele voltar e ficar.

O homem que foi julgado como culpado por eu ter me perdido, na verdade tinha sido um enviado de Deus para me salvar e me resgatar. E ele não sabia como fazer isso! Ele só me amou. Me amou, perdoou, persistiu e suportou meu sangue afogando muitos sonhos dele. Foi ele quem me levou para o autoconhecimento, foi ele quem me trouxe de volta para Jesus, quem segurou a minha mão e ficou ali quando eu tive que olhar para tudo isso.

Existe cura! E cura passa por aceitação, passa por Jesus e se mantém sendo escolha diária.

Eu demorei 2 anos para resgatar minhas filhas. Isso é o que mais me dói e também o que mais me alegra. Demorei 2 anos para restabelecer minha confiança em Deus, para me permitir fazer planos de futuro e voltar a sonhar. Eu não gritei com Deus, não O acusei, porém, O coloquei debaixo do tapete junto com toda minha dor e virei as costas para Ele.

Ignorei o que Ele sempre foi para mim e assim também ignorei quem eu era para Ele. Me joguei no mundo.

E enquanto isso perdia amizades, perdia a confiança das pessoas, perdia o respeito da minha família e perdia minhas filhas.

O que me curou? Inteligência emocional e conhecer quem eu era de verdade, porque nunca fui o que diziam de mim. Buscar incansavelmente minha verdadeira identidade que eu só encontrei conversando intimamente com Aquele que me conhecia antes mesmo de eu nascer, com aquele que me planejou e que me amou tanto a ponto de saber quantos fios de cabelo tem na minha cabeça.

Quando meus joelhos finalmente se dobraram e eu me entreguei a Jesus é que novos horizontes se abriram. Hoje eu dedico a minha vida para ajudar pessoas com fraturas emocionais profundas e encontrarem sua real identidade.

Essa é a cura completa, que vem como um refrigério, como uma libertação, com novas decisões e um recomeço banhado em amor.

Eu sou prova de que existe cura para traumas e fraturas emocionais. Meu casamento é prova disso. Meus filhos são prova disso.

E não tem como falar do que eu fiz com Deus sem falar do que Ele fez comigo. Para abrilhantar esse testemunho, quero te convidar a refletir sobre a esposa de Jó. Uma história Bíblica que vai falar conosco também sobre esse aspecto: nosso comportamento em meio ao desespero.

O livro de Jó é um dos mais antigos e profundos da Bíblia. Jó era definido como um homem justo e íntegro, que viveu em uma época remota da história (de acordo com pesquisadores, entre 1.800 e 2.000 a.C.), num período anterior ao êxodo liderado por Moisés. Portanto, vivia em tribo nômade, em registros históricos.

As escrituras dizem que ele era rico e influente, possuindo vastos rebanhos, muitos servos e uma família numerosa. Em Jó 1:1 está escrito ‘íntegro e reto, temente a Deus e se desvia do mal’. Isso fazia dele um homem admirado e respeitado. A esposa de Jó é mencionada no livro, logo no início. Não é mencionado seu nome, porém, partilhava da vida de bênçãos, do sucesso e da felicidade ao lado do seu marido. Porém, tudo muda repentinamente quando Jó é atingido por tragédias sucessivas, tem seus rebanhos roubados, sua casa destruída e seus 10 filhos são mortos em um acidente.

Nesse momento a esposa de Jó é colocada diante de uma das provações mais difíceis da vida: a perda devastadora dos seus filhos e a ruína de tudo o que tinham. A reação dela é uma das passagens mais polêmicas do livro, pois ela diz a Jó que amaldiçoe Deus e morra.

Sem dúvidas ela estava sofrendo profundamente diante das tragédias. Se desespero era compreensível e suas palavras refletem a confusão e a dor que ela sentia.


Essa mulher representa a humanidade em sua busca por respostas diante do sofrimento. Ela é um lembrete de que as provações da vida podem testar a nossa fé e a nossa compreensão sobre Deus e do propósito do sofrimento.


O comportamento dela em meio ao desespero nos leva a refletir sobre como reagimos diante das dificuldades e como a nossa fé é colocada à prova em momentos de angústia.

Quando a mulher é provada, clama a Jó para amaldiçoar a Deus e morrer, possivelmente porque a morte seria uma libertação para tanta dor, questionando a bondade de Deus. Ao nos aprofundarmos sobre a história dela somos lembrados da importância de sermos empáticos e compassivos em relação aos outros que enfrentam desespero e sofrimento.

Nos leva a refletir sobre como cada um pode reagir de forma diferente ao sofrimento.

A esposa de Jó pediu maldição e morte. Eu joguei Deus para baixo do tapete com toda minha dor. Eu não amaldiçoei, não questionei, não acusei. Mas virei minhas costas para Ele.

Quando ela compartilha do seu sofrimento com Jó, que se recusa a amaldiçoar a Deus e mantém sua fé, sua perseverança mesmo diante de tudo aquilo, logo eles restabelecem suas bênçãos, sua restauração e cura profunda, visto que permitiram que Deus trabalhasse em seus corações.

E você? Como tem lidado com o sofrimento? Quais são as palavras que usa quando está angustiado? Você tem pedido ajuda? É mesmo muito fácil amarmos a Deus e sermos gratos quando estamos bem, quando acreditamos que as coisas estão no nosso controle.

É fácil dobrar os joelhos pedindo misericórdia quando ainda temos a que nos agarrar.

Aqui está um convite para você acreditar, crer que Deus está trabalhando em meio ao cacos, em meio ao seu sofrimento, que Ele não erra. Não hesite em pedir ajuda, apoio especializado.

Seja honesta sobre as suas lutas e permita que outros caminhem ao seu lado nessa jornada. Pratique diariamente a gratidão como estilo de vida. Reconheça as coisas pelas quais você ainda pode agradecer. Pratique o perdão incondicionalmente.

Assim como eu precisei reconhecer meus erros, minhas falhas, quebrantar meu coração para ir lá nas profundezas da minha dor, limpar a sujeira que deixei embaixo do tapete, também tive que me perdoar por isso.

E debaixo de todos aqueles cacos que eu escondia, estava o meu Deus, meu Papai, que ao me ver ali, me acolheu. Eu finalmente entendi que Ele sempre esteve comigo e senti paz. Ele é tão bom que ficou ali o tempo todo me esperando, esperando meu tempo de voltar.


N’Ele descobri a minha verdadeira identidade, n’Ele tudo se fez luz novamente.


Estou aqui hoje porque vivo, movo e existo por Ele, para ser instrumento d’Ele de cura, de libertação, de renovo.

Hei! Ele te vê! Ele continua o mesmo! Continua curando, restaurando e amando e será assim por toda eternidade.

É hora de escrever uma história e ser feliz, mesmo depois de tanto sofrimento.

Você não precisa viver como um zumbi, arrastando uma pilha de cacos do que sobrou da sua vida, dos seus sonhos, de você. Você é muito mais do que isso.

Por trás do que você vê, existe o que Deus vê.

E Ele diz que você é o mais lindo vitral, construído com o mais lindo mosaico, onde cada pela que você julgava ser um caco, é uma parte do que torna única.

Você pode curar a sua vida.